Vivemos um momento decisivo para a educação brasileira. O Congresso Nacional deu início à análise do Plano Nacional de Educação 2025-2034 — um instrumento estratégico de longo prazo que estabelece diretrizes, objetivos e metas para os próximos dez anos. Esta revisão oferece uma oportunidade valiosa para que a sociedade reflita não apenas sobre os rumos das políticas de educação, mas também sobre o papel da cultura e das artes na formação integral de nossos jovens.
Paradoxalmente, esse debate ocorre em um cenário marcado por contradições. Enquanto o Brasil foi nomeado Creative Country of the Year no Festival Cannes Lions de 2025 — um reconhecimento internacional ao potencial criativo de nosso povo — os resultados mais recentes do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) revelam um alerta: os jovens brasileiros ocupam apenas a 44ª posição entre 64 países na avaliação de pensamento criativo. A baixa capacidade de formular ideias originais e diversificadas, medida entre estudantes de 15 anos, revela um déficit preocupante num dos pilares mais importantes: a criatividade.
Em paralelo, as escolas enfrentam desafios crescentes relacionados à violência. Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) indicam que 30% dos professores testemunham tráfico de drogas em ambiente escolar, 23% relatam a presença de alunos armados e quase metade presencia o uso de substâncias ilícitas.
Diante desse cenário, a inclusão de atividades artísticas nas escolas, especialmente o ensino da música, mostra-se não apenas desejável, mas urgente. A cultura precisa entrar neste vazio — não como ornamento, mas como estrutura. Abrir janelas, ampliar a ideia do que é possível, criar espaço para outras histórias, outros heróis, outras formas de vencer que não dependam da violência, da pressa ou das muitas outras fomes, além da de cultura.
Essa percepção é reforçada pelo estudo 'Arte e cultura nas escolas', do Observatório Fundação Itaú em parceria com a Equidade.Info. A pesquisa revela que 80% dos alunos percebem melhorias em seu desempenho escolar por meio da participação em atividades culturais. Para 81%, a presença da arte aumenta a motivação para frequentar as aulas — percepção corroborada por 96% dos gestores escolares e 95% dos professores.
Embora o novo PNE proponha diretrizes - porém vagas - para a promoção de uma formação humanística, científica, tecnológica e cultural, o texto ainda não contempla de maneira objetiva a educação musical. Menciona apenas de forma genérica a articulação entre cultura, saúde, educação e esporte na infância, e a ampliação de atividades extracurriculares no ensino fundamental e médio.
Precisamos aproveitar este momento para destacar que a cultura está diretamente associada à jornada de aprendizagem como um todo, à permanência escolar e ao estímulo a uma formação humanista. A música, em particular, tem o poder de transformar referências, ampliar perspectivas, propor trajetórias.
A trajetória da educação musical no Brasil revela avanços e retrocessos. Desde sua inclusão no currículo em 1854, o ensino de música passou por períodos de valorização, como na era do Canto Orfeônico de Villa-Lobos, e de esvaziamento, como após sua substituição pela disciplina de Educação Artística. Somente em 2008 a música voltou a ser obrigatória na educação básica. Contudo, a ausência de planejamento, assertividade e de professores especializados tem limitado sua implementação efetiva, privando milhões de estudantes dessa experiência transformadora.
Apesar dos obstáculos, a música permanece viva no imaginário coletivo. O Brasil é, hoje, o país que mais consome a própria música no mundo — um indicativo claro da potência cultural que pulsa em cada território.
Foi nesse contexto que a Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira criou, em 2017, o programa Conexões Musicais. A iniciativa promove o acesso à educação musical por meio de parcerias com redes públicas de ensino, oferecendo aulas, oficinas e concertos didáticos. Desde sua criação, o programa já alcançou 11.280 alunos de 166 escolas em 47 cidades de 12 estados brasileiros, com um total de 13.747 horas/aula ministradas. Seus 122 concertos reuniram mais de 91 mil espectadores.
Em reconhecimento ao seu impacto, o Conexões Musicais recebeu o Music Cities Awards 2024, premiação internacional que celebra projetos musicais voltados ao desenvolvimento social, econômico e ambiental das cidades. Neste ano, a CEO da Fundação OSB foi convidada a integrar o júri da edição norte-americana do prêmio.
Acreditamos que a educação musical oferece benefícios que vão muito além da formação de músicos profissionais. Ela estimula a criatividade, a concentração, o raciocínio lógico, o trabalho em equipe e o repertório cultural dos alunos. O ensino de música não é um luxo — é uma ferramenta essencial para a formação de cidadãos preparados para os desafios do século 21.
A criatividade é um dos principais motores da inovação e do progresso social. Para que o Brasil consiga transformar esse potencial simbólico em realidade concreta e honrar o título de Cannes é preciso reconectar a escola com o sensível, com a escuta, com a imaginação. A música pode ser o elo perdido entre a inteligência emocional e a formação acadêmica, uma convocação para a consciência e o potencial de criação do espírito humano que mora em todos nós e precisa ser cultivado.
Ana Flávia Cabral Souza Leite é CEO da Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira